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sábado, 30 de julho de 2011

Amplidão.




Todas as cartas estão manchadas. Eu lembro exatamente como manchei... Você me mandou rosas, e elas murcharam, e eu quis preservar alguma coisa das pétalas desidratadas, arranquei todas e coloquei dentro de um saco plástico, e as esqueci. Um dia resolvi abrir a sacola, e tudo o conteúdo vinho escorreu, manchando assim as cartas.
Hoje tirei a caixa com as cartas de cima do armário, os dedos tremendo sorteei uma: A primeira. Não a li de cara. Fui até a sala e deitei no sofá, liguei o som, fechei os olhos e depositei no meu peito. Lembrei das inúmeras vezes que quando eu estava assim, deitada ouvindo música eu ouvia sua voz, que vinha da porta da cozinha, e dizia: Manu? E eu as vezes levantava descabelada, morta de saudade pela semana que passávamos longe; as vezes fingia não ouvir, e você entrava e achava que me acordava, e eu fazia então, aquela cara de surpresa. Acho que fui muito atriz nisso tudo. Talvez por não saber como sou na verdade; na realidade eu não sei. Não é uma possibilidade, é fato que tentei me transformar em tudo que queriam. Fingia o amor, e quando cansei de o interpretar, descia no meu imaginário infantil a cortina negra, a luz diminuía gradativamente e então tomava de meu papel a tristeza. Deixava sempre em você a sensação de algo errado. Quero hoje te explicar: me esforcei em tantos papéis que quase te levei na minha loucura, na minha obsessão de ser alguém. Sinto-me tão tola, quero me esconder e chorar. Os outros dirão: que besteira! Eu sei que é uma, eu por inteira sou uma besteira. Talvez, por 19 anos pensei que não descobrir quem eu sou fosse uma forma segura de viver, desde então sigo fingindo, forjando relações, sorrindo cordialmente... Sempre atuando, numa tentativa ridícula de me enquadrar no que esperam. Não considerei o que eu queria, e sim o que você queria de mim. E tudo isso por pura covardia... Não! É pior que isso, é o resultado da minha ignorância de quem eu sou.
Ás vezes sofro por nunca ter amado ninguém, e também acho que nunca fui amada. Mesmo que alguém diga que sim, no fundo eu sei que não. Isso me angustia.
Nem o amor egoísta, nem o atarantado e nem mesmo o incômodo... Nem esse amor mundano e imperfeito apareceu.

Meninos.

Ela vestia aquele vestido de seda azul, uma fita branca separava a franja do resto do cabelo. E como era linda.
- Eu não aguento mais trabalhar o dia todo, chegar e ainda ter que ouvir as suas ladainhas. - ele disse apertando a cabeça e com os cotovelos sobre o joelho.
E ela, já vermelha de raiva, revidava: - Você pensa que é fácil cuidar dessa casa e desse demônio?
Ele, agora igualmente vermelho: - Demônio? Agora nosso filho é um demônio? Pois saiba que se não fosse por esse demônio eu já nem estaria nessa casa!
- Pois eu digo o mesmo. Se não fosse esse demônio, eu estaria bem longe!
Nem era preciso o menino ouvir mais, "será que eu sou um demônio?", e a dúvida martelou na cabeça do moleque a noite toda.
Pela manhã a mãe, de rosto inchado veio lhe comunicar:
- Pedro, você vai passar o resto das férias no interior com seus avós.
E ele sem saber das dimensões daquilo sorriu.
Pedro tinha três amigos na cidade dos avós, e adorava se reunir com eles pra ir a cachoeira, a padaria, comprar leite pela manhã e principalmente fugir no meio da noite pra encontrá-los.
- Heitor, sabia que eu sou um demônio?
- Quê?! E não é demônio, é dimônio!
E o outro moleque, o Júlio: - Mas como vocês são burros! - e deu uma risada longa: - É DIMONHO!
Os três riram.
E Pedro disse: - Ah só se for aqui, porque lá é demônio. E também não importa, o que interessa é que eu posso ter o que quiser, não é?
E os outros dois responderam juntos: - É, acho que é.
- Heitor, se você fosse um demônio o que você ia querer?- perguntou Pedro.
- Ah, eu ia pedir pra ser piloto de avião... - respondeu deitado na pedra, olhando o céu. - E você Pedro?
- Ah, eu ia querer ser playboy!
Os outros dois riram muito da palavra desconhecida: - E o que é isso?
- Ah, não sei bem. Mas dirige cada carrão! - disse fazendo com as mãos movimentos como se tivesse dirigindo um carro. - e você Júlio?
- Eu queria ser rico.
O sol esquentava os meninos deitados na pedra mais alta perto da cachoeira.
E o Pedro concluiu: - Até que não é má ideia ser demônio.
- É dimonho! - gritou o Júlio.
E os três caíram na gargalhada.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Enquanto ele dorme..


Essa é a ultima carta que te envio. É uma carta de desamor, que encerra as de amor.
O cansaço esta na minha medula, em meus nervos, na flor da pele... Ontem pela manhã foi tudo um mal entendido. E agora escrevo pra dizer que o entendimento nem pode ser mal, ele não existe mais.
Ontem faltou luz. Um breu imenso se instalou, não tinha velas em casa, e tive que me deitar... Pensei em tantas coisas: em mim, em você, mas não em nós. Vi então os vários indícios de que a palavra "nós" não nos pertencia mais. Aliás, pertence, de certa forma: nós poderíamos manter o amor, a felicidade... Isso se nós não tivéssemos feito tantas coisas, se não tivéssemos nos doado tanto. Mas houve uma quebra, uma ruptura, que até ontem eu não sabia onde estava. Descobri, entre todas as coisas que não concluí, que eu já não te amava mais havia um bom tempo...E nós ainda lutávamos quando o amor se transformou em "bom dia", estávamos tentando ir em frente, quando dizer "Eu te amo" se tornou desconfortável, se tornou poesia fácil; vá a merda!
Ontem a noite percebi que estávamos numa luta perdida, e você que se dizia forte foi um fraco, tínhamos em mãos um contrato quebrado, precisávamos só queimá-lo e fingir que o amor nunca existiu. Demos tudo de forma desregular, não soubemos distribuir o amor, o afeto, o carinho e nem a raiva.Bom, dei tantos rodeios nessa carta, quando o que quero dizer é só para que você não me procure mais. Escrevi essa carta na noite seguinte á que faltou luz, e tenho na minha cama, agora dormindo um novo amor. Não espero nenhuma resposta, não espero nenhuma gaveta, não quero que ela seja rodeada de cuecas, ou das cartas de amor que te escrevi. Pois as cartas de amor não merecem conviver com a carta que anuncia o fim do amor. Deixe que elas se enganem. Mando com a carta esse disco com faixa única. Quero destacar: "Porém não se surpreenda se uma outra mulher nascer de mim, como do deserto uma flor."

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Suis.


Ela não movia um único músculo visível.
- Você não deveria ter deixado ele te pintar.
- Antes ele queria me pintar por que me amava, depois, não queria me pintar por que me amava. Mas eu insisti. - disse, sem o olhar na cara.
- Eu disse á você...
- Eu nunca vi nada tão frio! O pior encontro é aquele que marcamos com nós mesmos, por isso ele só acontece quando estamos morrendo, e essa pintura adiantou meu encontro. Eu sou tão seca, tão fria.
Ele tentou se aproximar, tentou a abraçar:
- Eu sei que posso te ajudar, se você deixar.
Tirou os olhos da cadeira, e disse:
- Ontem o maquinista correu tanto, e o mundo da linha correu tão rápido aos meus olhos que até senti vertigem... De repente ele parou: "Estamos aguardando a movimentação do trem á frente." E na margem da linha de trem tinha um velhinho com um chapéu de palha e um cachorro ao lado, e ele me olhava fixamente. Como se soubesse que eu tinha vivido aquele encontro, mesmo longe da morte. Tenho certeza que ele queria me perguntar como era. Ele me perguntou, mesmo separados por um tanto de metais, eu sei que ele perguntou. E ele sabe que eu respondi: Sorte dos que, de fato, morrem após esse encontro. - disse com os lábios tremendo por prender o choro. - Eu não posso mais querer ajuda. Eu não tenho o direito de te perturbar previamente, eu já nem existo. Descobri que não tenho nada além da carne. É tudo frio, é tudo escuro e assim é o vazio: gelado.
- Eu sei o que vai fazer... Alguma coisa te impediria?
- Não.
Ele beijou-a na testa.
- Poderíamos viver felizes. Eu regaria teu jardim e você compraria todas as sementes que quisesse.
Ela enxugou o rosto com o dorso das mãos:
- Eu fiz minha escolha.

sábado, 2 de julho de 2011

Em duas cidades.


Tive a impressão de que um simples toque desintegraria aquele rosto, de tão enrugado que era. A boca parecia um rabisco de criança, e a língua não cabia inteira dentro dela. Talvez por isso, dizem que velhos são crianças. Que pobre conclusão! - penso.
Suas unhas estavam pretas... sujas. E era um sentimento, desses sem nome, ver que eram unhas, dedos, mãos e corpo que se agarravam à vida. Mesmo quando ela teime em sair de nós, nunca pensamos confortavelmente sua ida, e nem a encaramos docilmente. Talvez por isso ficamos com aspecto bestial, com essa fome de vida. Mas por mais garras que tenhamos, a morte fica aqui, ali, em mim, em você e nessa pobre senhora, ela fica instalada em nossa retina. Pega o espelho, olhe bem. Consegue ver?
Quem dividia lugar com a morte nos olhos da senhora era o desprezo, o desdém. Ela fitava a todos, e mostrava a pena que sentia das ilusões dos jovens. Deslizou as mãos no banco, e começou a escrever. Me esforcei tentando decifrar, e ela percebendo meu esforço, repetiu inúmeras vezes até que consegui: Miriam.
Por que Diabos, repetia o desenho de seu nome no banco do trem? Miriam, Miriam. Como que para lembrar-se que existe, para mostrar pra morte que o nome vai do dedo ao banco, mas não do corpo à lápide. Quando levantei os olhos dos dedos dela, fitei-a me encarando, com a boca semiaberta. Seu cabelo bagunçado e sujo movimentava-se pouco com a enorme ventania que entrava pela janela. Baixou os olhos, e os fixou em meu tênis.
Não consigo não pensar no que ela já viveu, amores dos bons, dos maus. Filhos? Todos devem ter ido embora. Amigos? Mortos. E a infância? era viva, bem viva dentro dela.
Levanto e sento ao lado dela.
- Dona Miriam?
Silêncio. Me senti uma tremenda idiota. Olhei pro chão, e assim fiquei, até que a boca rabiscada se abriu:
- Sim?
- A senhora se incomoda de virar uma história?
- Você quer me matar antes do tempo?
- Não, quero te perpetuar...
- Só se faz história de mortos, ninguém quer lembrar dos vivos.
- Não é bem assim. - disse já sem esperança
- Tudo bem, agora deixa eu seguir viagem em paz, e volta pro seu lugar. - ordenou vivaz. Fiquei tão desnorteada que obedeci prontamente. E assim, seguimos viagem: meus olhos nos olhos dela, os dela em meu tênis.